Página da versão 2008 do site. Por Helio Mattos Jr e Alexandre Fidelis.

No tempo em que não havia tempo - Regina Machado


Regina Machado sabe “virar o olho” como poucos. (No texto a seguir ela explica o que é isso.) É professora da Escola de Comunicações e Artes da USP, onde escreveu em 1989 a tese de doutorado “Arte-Educação e o conto de tradição oral: elementos para uma pedagogia do imaginário”. Como tese de Livre Docência, em 2002, escreveu o livro Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias, ainda a ser publicado. É grande estimuladora da arte narrativa no País, tendo sido curadora de projetos como “Caravanserai: encontros de contadores de histórias” (Itaú Cultural SP, 1998) e o Encontro Internacional de Contadores de Histórias “Boca do Céu” (SESC-SP, 2001). Escreveu “A Formiga Aurélia e outros jeitos de ver o mundo” e “Nasrudin” (Companhia das Letrinhas). Já veio algumas vezes à ilha de Santa Catarina, para inesquecíveis sessões de histórias. Coordena o grupo “Pé de palavra” de contadores de histórias.

No tempo em que
não havia tempo
Regina Machado

No tempo em que não havia tempo, num lugar que era lugar nenhum, viveu uma jovem que queria se tornar contadora de histórias.  Uma amiga lhe deu de presente um conto que se chamava “A página branca”.  A autora, Karen Blixen, era a mesma que havia escrito a história que originou o filme A festa de Babette.
A jovem se pôs a ler o conto e logo no começo encantou-se com uma passagem que transcreveu imediatamente no se caderninho vermelho, onde ela anotava tudo que fosse útil para seu desejo de saber.  Era a parte em que uma velha contadora de histórias transmitia à sua neta o conhecimento ancestral das mulheres de sua família, todas elas contadoras de histórias há muitas gerações.  O trecho que a jovem registrou vagarosamente, parando em cada palavra, foi o seguinte:

Minha avó me dizia: - seja fiel à história.  Eterna e inquebrantavelmente fiel [...].  Escute bem: quando se é fiel, eterna e inquebrantavelmente fiel ao conto, é então que o silêncio começa a falar.  Quando a história é traída, o silêncio é vazio.  Mas nós, os fiéis, quando dizemos nossa última palavra, nós ouvimos a voz do silêncio. [...] Quem então conta a mais bela história, melhor do que qualquer um de nós? O silêncio.

Depois de ler milhares de vezes aquelas linhas, com o coração batendo forte, a jovem entendeu que o que estava escrito ali era muito importante, parecia que ela sabia o que era, mas ao mesmo tempo não sabia direito.  Então ela perguntou a sim mesma: - o que quer dizer ser fiel à história?
À noite sonhou com a própria Karen Blixen.  Ela lhe disse que no sertão do Cariri, no Nordeste brasileiro, havia um contador de histórias que, se ainda estivesse vivo, tinha uma pista para que ela pudesse responder àquela pergunta.
Depois de colocar na bolsa o caderninho e mais umas coisinhas necessárias para a viagem, a jovem comprou uma passagem para a cidade do Crato, que fica no Ceará, ela se foi ela.  Andou e andou e andou até encontrar o tal homem já bem velhinho.  Ele escutou uma porção de perguntas que ela fez e disse que não sabia muito bem o que era isso de ser fiel à história.  Mas, para ele, a coisa mais importante era a cadência.  Do jeito que ele pensava, bom contador de história era quem contava com cadência, vai ver, quem sabe, isso era ser fiel à história.
- Mas como posso descobrir o que é cadência? – perguntou a jovem.
O velho respondeu que aquilo, ele sabia muito bem, só que não tinha explicação.  Mas que se ela fosse até Salvador podia procurar uma senhora chamada Lydia Hortélio, que com certeza ia ajudá-la.
Dona Lydia Hortélio, uma estudiosa de música da infância, apaixonada pela cultura brasileira, recebeu a jovem com um sorriso de menina em sua casa lá em Salvador:
- Minha filha – falou dona Lydia -, cadência é ritmo.
Ela sabia uma quantidade enorme de cantigas populares de várias partes do Brasil e foi cantando e dançando muitas delas, que era para a jovem perceber e sentir o que ela tinha para lhe dizer.  Que cada cantiga tem uma qualidade diferente.  Uma é mais sapeca, outra mais engraçada, ou mais nostálgica, e assim por diante.  Não dá para cantar todas do mesmo jeito, com a mesma intenção, com o mesmo andamento.
Mas isso era com as cantigas.  E com as histórias? – perguntou a jovem.
Dona Lydia disse que ela precisava guardar bem na memória o que havia aprendido, tanto faz que fosse cantiga ou história.  Porque tanto uma como outra pedia para ser cantada ou contada de um jeito só dela.  O ritmo não quer dizer apenas a pulsação, a repetição de batidas, mas muito mais do que isso.  A intenção dá a expressividade do ritmo na cantiga ou na história.  A intenção vem quando a gente percebe as qualidades daquele ritmo particular; o conjunto dessas qualidades, a gente pode chamar de “clima” geral da cantiga ou da história.
- Para saber mais sobre essa qualidades você pode ir atrás de uma professora lá em São Paulo, no nome dela é Tetela Barcelos.
A jovem foi e chegou numa aula dessa professora bem quando ela estava desenhando um trem na lousa.
“-Uma história é como um trem” – ela ia dizendo. “A locomotiva puxa os outros vagões, assim como na história a locomotiva é a primeira parte, que puxa todas as outras.  A primeira parte é a que dá sentido e continuidade à história.  Por exemplo, uma tarefa a ser realizada, uma princesa que sumiu, uma pergunta sem resposta, são questões que iniciam uma determinada história.  Cada uma pode ser considerada uma questão-locomotiva que já traz em si mesma um tom, uma direção e um clima que puxa o que vai acontecer dali para a frente.  As outras partes-vagões dão continuidade à questão inicial, uma ligada à outra, e essa ligação é que define a seqüência narrativa. Mas cada parte é diferente da outra.  Assim toda história tem um clima geral – que a gente pode chamar de clima de aventura, de amor ou humor – e um clima diferente em cada uma das partes da seqüência narrativa.”
-Bem – pensava a jovem -, então as qualidades não são as mesmas em cada parte da história; isso quer dizer que a cadência é feita das ligações entre as diferentes qualidades que se manifestam em cada parte da seqüência narrativa.
Ela perguntou à Dona Tetela como poderia saber quais são as qualidades de cada clima dentro de um conto.
A professora respondeu que já estava atrasada, ela tinha muita prova para corrigir.  Havia uma única coisa que ela queria dizer:
“Você precisa perceber o que é essencial em cada clima”.
A jovem anotou no caderninho e quis saber como ela poderia entender melhor o que a professora tinha acabo de falar.
A professora sugeriu que ela fosse assistir ao espetáculo de um artista chamado Antonio Nóbrega, num teatro chamado Brincante.
No escuro da arquibancada a jovem escutava o músico tocando rabeca e cantando, sentado em um banco alto.  Então ela notou que os pés descalços do músico, que não tocavam o chão por causa da altura do banco, movimentavam-se no ar junto com a música.  Quer dizer, era como se ele todo fosse aquela música, dos dedos dos pés até o alto da cabeça, tudo junto, vibrando e manifestando as qualidades daquela música, manifestando seu clima.  Os olhos da jovem brilharam, e ela escreveu no caderninho: “Aquilo que é essencial se expressa no corpo todo desse artista. Ele não canta só com a voz, nem toca só com os dedos das mãos. Ele canta e toca com o corpo inteiro”.
Ela desenhou os pés do Antonio Nóbrega no caderno, mas nem precisava, porque a imagem vibrante tinha ficado gravada na sua memória.  E o que ela compreendeu naquele momento escreveu com letras enormes que ocupavam a página toda:
“É PRECISO RESPIRAR JUNTO COM A HISTÓRIA”.
Mas como?
Um rapaz sentado ao lado dela, na arquibancada do teatro, já fazia tempo que espichava o rabo de olho para ver o que tanto ela escrevia.
No final do espetáculo ele puxou conversa.
Disse que fazia parte um grupo de contadores de histórias chamado Pé-de-Palavra e que tinha uma porção de anotações dos ensaios. Se ela quisesse, eles poderiam se encontrar, e ele lhe mostraria algum material de suas pesquisas.
Quando a jovem chegou ao Café onde haviam combinado o encontro. Lá estava o rapaz sentado numa mesa. Ele lhe mostrou uma única folha de papel, toda colorida por desenhos grandes, pequenos e minúsculos.
- Achei que isso poderia servir – ele disse. – É uma fala da minha diretora, no ensaio da semana passada.  Pode levar, se quiser.
A jovem leu:
A disposição interna para se deixar levar pela respiração da história é uma aprendizagem que se faz pelo exercício de habilidades:
1 – de observação – de pessoas, tipos humanos, fatos, objetos e fenômenos da natureza, ou seja,
2 – de percepção da expressão das coisas, o que quer dizer, “ver” e “conceber” com a imaginação, com a intuição do que pode ser. Para isso é necessário:
3 – curiosidade, sendo de humor, capacidade de brincar, de correr o risco, de perguntar, de ter flexibilidade para ver as coisas de diferentes pontos de vista,
4 – contato com imagens internas significativas, com o poder do silêncio e do mistério, com as possibilidades expressivas dos gestos corporais, do olhar e da voz.
Tudo isso é sonhar? É despregar-se do certo e do errado, do conveniente, do previsível, das regras estabelecidas, do medo, de tudo que é aprisionador da condição humana?
É. Bem o sabe Chico, personagem de Ariano Suassuna, que, depois de relatar suas histórias mirabolantes, indagado sobre a veracidade de seu relato, responde:
“- Não sei, só sei que foi assim.”
O item 3 daquela página chamou a atenção da jovem mais do que tudo e ficou martelando na sua cabeça. Mas quando ela levantou os olhos do papel para falar com o rapaz, ele já havia ido embora. Na mesa tinha deixado para ela uma rosa cor-de-rosa, junto com um bilhete:
“A flexibilidade traz eficiência poética para a arte de contar histórias. A eficiência poética depende de um exercício da percepção voltada para as qualidades das formas.  Qualidades que todas as formas que existem manifestam, tanto as vivas como as inanimadas. Gente, bicho, árvore, bule, pano, trovoada, tudo isso pode manifestar qualidades de vários tipos. Cheiro, movimento, densidade, cor, tamanho, são, por exemplo, qualidades das formas. Mas também quando achamos que um espanador é divertido, uma bolsa é misteriosa, uma cadeira é desengonçada ou um copo de cristal é altivo, é porque atribuímos a estas formas certas qualidades que são resultado de um conversa imaginativa entre o que vemos nas formas e nossas imagens internas.
A partir das características estruturais das formas, nós as revestimos com nossas ressonâncias pessoais. E assim lhe conferimos sentido, elas passam a ter eficiência poética, justamente porque significam algo para nós. Como tudo o que está numa história: personagens, espaços, objetos e assim por diante.”
E justo quando a jovem, nesse momento da leitura do bilhete, se perguntou: - Sim, e a flexibilidade? -, havia um p.s: “Talvez você devesse ler o conto ‘Pirlimpsiquice’, de João Guimarães Rosa, que está no livro Primeiras estórias. Preste atenção no personagem Zé Boné. Por enquanto é só. Tchau e boa sorte. A gente se vê por aí”.
A jovem parou na primeira livraria que encontrou e comprou o livro:
“Zé boné, com efeito, regulava de papalvo. Sem fazer conta de companhia ou conversas, varava os recreios reproduzindo fitas de cinema: corria e pulava, à celerada, cá e lá, fingia galopes, tiros disparava, assaltava a mala-posta, intimando e pondo mãos ao alto, e beijava afinal – figurado a um tempo de mocinho, moça, bandido e xerife.”
Deitada na cama, às 3 horas da manhã, rememorando Zé Boné e o lindo conto que tinha acabado de ler, a cabeça da jovem era um redemoinho. Pela janela entrava suave a música de Caetano Veloso que o vizinho escutava:
“Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer...”
Zé Boné é a manifestação da flexibilidade, ele expressa e vive todos os personagens, passando de um para outro, incessantemente, inesgotavelmente, era o que a jovem ia dizendo para si mesma, como num devaneio. Como a nossa capacidade imaginativa, fluxo sem fim, que muda de posição o tempo todo, não se fixa e não se identifica definitivamente com nada.  É a possibilidade, dentro de nós, do vir-a-ser, de todas as transformações que podemos conceber para nos tornarmos seres humanos de verdade. E as palavras foram se formando e se misturando no seu pensamento, depois foram se esgarçando como fiapos de nuvem, e ela sonhou com a felicidade. No dia seguinte, saiu apressada, sempre com seu caderninho dentro da bolsa, e foi até uma praça cheia de árvores que ficava perto de sua casa. Uma lembrança queria aparecer, mas ainda não estava clara. Ela conhecia de longa data o Zé Boné, mas o que seria mesmo essa coisa que ela sabia o que era, mas conseguia se lembrar?
Quando sentou num banco da praça, havia uma velhinha com chapéu florido e um vestido de bolinhas azuis sentada a seu lado, comendo castanhas de caju.
A jovem sorriu para a velhinha, mas não quis conversar. Abriu o caderninho e fingiu que estava escrevendo, só para poder continuar a pensar no Zé Boné. Até que de repente ela se lembrou:
- É claro, a flexibilidade é a capacidade de brincar. É o que eu sabia fazer quando era criança, quando conversava com minhas bonecas.
- Criança vive virando o olho – disse a velhinha a seu lado, enquanto lhe oferecia uma castanha de caju do seu saquinho de papel.
- Como assim? – perguntou a jovem.
- Pois ontem eu estava brincando com umas meninas lá na creche – continuou a velhinha – e eu tinha comprado um saleiro no supermercado, uma surpresa para as crianças. Foi uma festa, na hora já deram para ele o nome de rainha Lavínia. O nome não sei de onde saiu, mas era uma rainha perfeita.  Sabe, um saleiro de vidro um pouco mais largo embaixo, depois ele vai afinando até chegar na tampinha prateada, que parece uma cabeça, até uma coroa a gente enxerga. Quer dizer, se você virar o olho, é claro. Lá no supermercado, com o olho virado, eu já tinha enxergado uma rainha, mas não falei nada. As meninas da creche logo foram procurando outras coisas que viraram os outros personagens da história que a gente foi inventando todo mundo junto. O tempo passou, e a gente nem viu. Se você quiser saber melhor o que é virar o olho, pode dar uma passadinha na creche na 5ª feira de manhã. Agora eu preciso ir embora. Bonito seu caderninho, viu?
A jovem viu a velhinha se afastando por entre as árvores da praça. Parecida uma fada-madrinha, bem que poderia ser, por que não?
Na creche a jovem observou as brincadeiras das crianças, era uma creche especial, onde deixavam que elas brincassem do jeito delas. O que é raro hoje em dia.  A jovem se lembrou de muita coisa de sua infância, acordou dentro dela um conhecimento que vinha de muito longe. Percebeu que aquilo que ela recordava era o que ela sabia, mas não sabia que sabia. E outra vez escreveu no caderninho:
“Para contar histórias, a gente tem que se preparar. Mas antes eu pensava que essa preparação era apenas aprender técnicas, trabalhar com minha voz tornando-a clara e expressiva, modulando-a de acordo com cada personagem. Eu queria saber o que fazer com minhas mãos, para onde eu deveria olhar, que roupas deveria usar, como atrair a atenção das crianças, como mantê-las atentas, que tipo de história seria mais adequada para cada faixa etária, como decorar o texto...
Agora estou descobrindo que existe uma outra preparação, muito importante. Antes de mais nada eu preciso aprender a recordar o que já sabia, mas não sabia que sabia. Isso quer dizer acordar e exercitar certos recursos internos, que eram vivos dentro de mim quando eu era criança e me deixavam brincar. Quando criança, eu sabia perguntar, minha curiosidade me levava a indagar sobre o que poderia ser, eu arriscava experimentar o que era desconhecido, eu concebia planos e estratégias atualizando-as nas brincadeiras; brigava, compartilhava e negociava com outras crianças aquilo em que acreditava de verdade. Cada instante era um mundo inteiro. Em cada instante eu estava inteira. Assim como em cada instante da história o contador de histórias se faz e se transforma inteiro. Se estou completamente presente na história, posso me deixar conduzir por ela. A cada momento ela me pede para ser contada de um jeito particular. Porque estou lá dentro da história, o susto que experimento diante do perigo que ameaça os passos do príncipe em faz arregalar os olhos e respirar rapidamente. Os olhos do contador de histórias estão onde a história está. Se os olhos do narrador estão vendo a história, todo mundo que está escutando também vê. Se ele respira a história, todo mundo respira junto. A respiração suspende e sustenta o fio da narrativa acima e além do tempo, no instante em que as horas param.
‘O tempo perguntou para o tempo, quanto tempo o tempo te. O tempo respondeu para o tempo, que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem’.
As horas param para que dentro da história cada um que conta ou escuta possa brincar; quer dizer, contar-me minha própria história ‘como se’ ela fosse outra história. Assim eu me visto de outras pessoas, como fazia quando era criança, percorrendo outros caminhos e lugares. Minha própria história, muitas vezes transformada. De diferentes pontos de vista, sendo outros, eu mesma sendo. Guimarães Rosa – outra vez, sempre me lembro dele – disse: ‘Amar não é verbo. É luz lembrada’.
Brincar, para o contador de histórias, também não é verbo, é luz lembrada. Então eu não preciso buscar, Deus me livre, técnicas para fazer a voz da bruxa ou o gesto do príncipe, como uma representação correta. A luz lembrada, ou flexibilidade imaginativa que é disposição interna para brincar, me conduz para dentro do instante da história. E passo a passo, a própria história, já que estou lá de verdade, comanda meus gestos, minhas pausas, a cadência da minha voz. Assim posso expressar qualidades diversas, que são a alma de tudo o que se apresenta na história. Quando uma criança pode ter uma experiência importante da história de um certo rei? Quando lhe é dado entrar em contato com a qualidade essencial que anima esse personagem. E se o modo como o contador de histórias expressa esse rei não revela essa qualidade, essa experiência não é possível. Se é um rei estereotipado, descarnado, casca, o contador de história pode estar usando até uma coroa, que nada de importante vai acontecer.
A figura do rei, sua voz, olhar, gestos e, principalmente, sua respiração, nasce de um lugar interno onde o contador de histórias experimenta a qualidade da nobreza e da generosidade, como uma recordação. De todas as vezes na sua vida em que viveu essa qualidade por inteiro, ou que sonhou vive-la, ou que a presenciou sendo vivida por outros personagens ou pessoas. É pela atualização dessa lembrança que ele dá vida ao rei, ao seu rei. E assim, generosamente, o contador de histórias torna-se presente, presenteando a audiência com o gesto amoroso, luz lembrada, que é ao mesmo tempo um convite à recordação de cada ouvinte. Um presente.”
A jovem fechou o caderninho, exausta. Naquele dia resolveu não fazer nada. Ficou passeando á toa pela cidade, tomou sorvete, puxou prosa com gente que não conhecia.
À noite perfumou seu quarto com água de rosas e deitou-se para dormir.
Sonhou que estava no alto de uma colina, sentada embaixo de uma gameleira, no final da tarde. Em volta dela, havia uma roda de crianças esperando que ela contasse uma história. E quem mais? Os oito personagens que ela havia encontrado desde que tinha desejado se tornar uma contadora de histórias.
E ela começou: “No tempo em que não havia tempo, no lugar que era lugar nenhum...”.
De dentro de uma cestinha a jovem tirou vagarosamente um espanador colorido, que era o rabo do cavalo falante que aparecia para salvar a princesa das garras de uma hidra.
Da platéia a velhinha da creche piscou para ela. Não é que a danada tinha aprendido a virar o olho? – ela pensou.
Enquanto a jovem contava, brincando de contar, Guimarães Rosa limpava os óculos de fundo de garrafa, fumando sem parar. Ele pensava com seus botões que aquela jovem contadora de histórias parecia o Zé Boné.
E logo a contadora de histórias improvisou uma fala da princesa para o príncipe da história, mas só que ela disse tudo olhando bem dentro dos olhos do rapaz do grupo Pé de Palavra, que estava sentado numa pedra atrás das crianças:
- Pois é, seu príncipe. Minha intuição me fez perceber que eu gosto muito do seu jeito de conversar. Então pensei que a gente poderia se encontrar de novo e, quem sabe, a gente pode se casar?
E sem parar de contar a história jogou um bilhetinho para o rapaz, que caiu bem no colo dele. No bilhete ela agradecia a rosa cor-de-rosa, a dica sobre os recursos internos, e também havia detalhes mais práticos, como hora e local do encontro.
Na hora em que o vento da história a sacudiu e ela sentiu que se arrepiava toda, mesmo que ali na colina não houvesse vento nenhum, ela olhou para o Antonio Nóbrega. Na verdade ele não estava prestando atenção à história, porque estava ensaiando um personagem atrás de uma pitangueira. Mas a jovem sabia que estava respirando a história graças `a imagem dos dedos dos pés dele sacudindo com a música, gravada na sua memória.
E ela respirava desenrolando a história, no pulso de cada clima, as palavras destacadas, fulgurantes, as frases pronunciadas com peso ou leveza, rapidez ou lentidão, as pausas inesperadas, a preparação para o clímax, o olhar anunciando a tempestade ou o sol do meio-dia. Porque o essencial de cada clima, de cada parte da história estava ali, conquistado, mil vezes visitado na experiência de estudar o conto, quando ela se deixava tocar pelas qualidades das palavras.
A professora Tetela Barcelos ria. Essa menina vai longe, ela pensava com uma silenciosa satisfação.
Dona Lydia Hortélio procurava pedrinhas pelo chão, mas enquanto andava estava completamente atenta à história, acompanhando o ritmo da narração. De repente se sentou ao lado do contador de histórias da cidade do Crato:
- Êta história bonita, bem contada que faz gosto, o senhor não acha?
- É porque em cadência, dona.
A jovem terminou a história pousando as palavras como um pássaro descendo ao chão depois de ter sido arrebatado por um redemoinho.
Em silêncio, os braços imóveis, o rosto afogueado, a respiração outra vez serena, ela viu que todos do público se afastavam e desapareciam colina abaixo.
Uma mão tocou seu ombro, e ela se virou. Diante dela estava Karen Blixen, só que era ao mesmo tempo a velha contadora de histórias do conto “A página branca”.
A jovem lhe perguntou:
- Será que eu fui fiel à história?
A mulher sorriu, e a jovem abriu os olhos.
Era de manhã, e ela estava outra vez no seu quarto, bem acordada.

MACHADO, Regina. No tempo em que não havia tempo. In: GIRARDELLO, Gilka. Baús e chaves da narração de histórias. Florianópolis : Ed. SESC/SC, 2004. p. 37-53. 
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